sexta-feira, 26 de março de 2010

P388-As Crónicas do Zé Rodrigues

Aqui vai mais uma Crónica  do Zé Rodrigues acabadinha de chegar.. Deliciem-se:

“istórias” da História da Guerra Colonial ---  Guiné-Bissau
“Conversas à mesa com camaradas ausentes”
8 – De Bafatá até ao regresso a casa.
A vinda para Bafatá tinha o sabor de um doce saboreado fora de tempo. Mas era a janela que já se abria à concretização dos sonhos, construídos na esperança de mais uma etapa prestes a ser vencida. Fui aqui colocado, num aquartelamento na zona alta da cidade. Passava uma parte do tempo no parque que ficava por detrás da igreja. Lembram-se camaradas? Era um local agradável, fresco, porque repleto de frondosas árvores e aí nascia uma fonte que se perdia numa pequena bolanha adjacente. Entre as árvores do parque registei uma, de bom porte e que não conhecia. Tinha uns frutos grandes, arredondados, de pele rugosa e acastanhada. Era a Jaca, um fruto que saboreei depois e que considero delicioso, como deliciosas eram todas as outras frutas tropicais disponíveis na Guiné, em especial a polpa do caju. Entre os outros “afazeres” que me ocupavam em Bafatá, eram uns mergulhos na piscina ali junto do Geba, umas idas ao cinema naquela rua que desembocava no mercado e umas idas ao Posto de Socorros de um Batalhão sediado na cidade e que ficava ao fundo da mesma rua. De vez em quando, ia aquele café que fica à direita de quem desce a avenida, saborear um pomposo “bife de porco com batatas fritas”. Gostava de ir ver trabalhar um artesão que executava o seu trabalho na tabanca de Bafatá que, ficava na saída para os lados da ponte. Fazia lindas peças em ouro e prata. Observava deliciado o espelho de água do Geba e a tarefa dos pescadores que, de pé nas suas frágeis canoas, lançavam as redes em tal equilíbrio, quase sem provocar qualquer movimento na embarcação.
Era o sol abrasador, nesta terra no centro da Guiné. Nesta época era uma cidade tranquila, as movimentações militares giravam ao seu redor. Lembro, que daqui tinha saído o bacalhau que, faltando no Xitole, alegrou e deu sentido ao nosso Natal de 1971, apesar do risco que isso comportou. A estrada entre Bafatá e Bambadinca, sede do nosso Batalhão, era alcatroada e estava em muito bom estado. As deslocações entre estas localidades eram fáceis e frequentes. Aproveitei uma boleia e fui até Bambadinca. Lembras-te camarada? Apareci-te de surpresa e passamos um dia muito especial. Na tua companhia, tive oportunidade de conhecer a “tua” terra, o que não havia conseguido durante toda a comissão. Na parte baixa, ao lado do Geba, ficavam a fonte, o posto dos correios, o posto de combustíveis e o comércio, maioritariamente gerido por europeus. Na parte alta eram as tabancas, principalmente na estrada da saída para o Xitole. E no quartel eram a escola, a capela, a casa do chefe do posto e as áreas militares. E era a enorme bolanha a perder de vista, e as imensas cabeças de gado a pintar a paisagem. Dava um postal magnífico, se não fossem os obuses a destoar do quadro.  Regressado a Bafatá, e uma vez mais em convívio com os meus pares em serviço no posto de socorros do batalhão desta cidade, voltei a exercer a minha função, prestando apoio na assistência a um grupo de militares acidentados, que estavam bastante maltratados. Ao que soubemos, algumas viaturas saíram de Galomaro a caminho de Bafatá e, uma delas despistou-se, ainda antes de terem entrado na estrada alcatroada. Eram algumas fracturas, e escoriações no couro cabeludo e membros. Coube-me prestar assistência a um Furriel, alto, magro, ruivo e de rosto sardento, que seria talvez o ferido com menor gravidade. Noutro momento e noutras crónicas, voltarei a este episódio.
E, os cerca de dois meses em Bafatá chegaram ao fim. Tinha sido um tempo diferente. Tal era a diferença, que cheguei a pensar e até a sentir, que não estava em teatro de guerra. Até que, me enviam para o Xime ao encontro da minha Companhia. Eram os rituais de despedida do MATO. Formados na plataforma de embarque do Xime, o Comandante referia-se ao nosso historial, citando principalmente os louvores e as baixas. Era a hora do balanço, numa linguagem fria, quase desumana, que escondia tanto sofrimento e tantos dramas individuais. Não era ainda a hora de se desligar o interruptor da guerra, mas era a hora e o momento de se levantar o olhar para o horizonte e tentar-se vislumbrar o reencontro com a nossa vida.
E, na maré alta, depois do macaréu, lá partimos na LDG a caminho de Bissau. Já não nos importavam os perigos da viagem no Geba. Já quase tinha-mos esquecido os tempos difíceis que ficaram para trás. Só uma coisa importava; BISSAU. Era a ansiosa necessidade de queimarmos mais esta etapa.
Chegados a Bissau, aquartelamos uma vez mais no Depósito de Adidos aguardando transporte aéreo para a Metrópole. E a cidade foi acrescentada de uma pequena multidão ávida de novas emoções, misturadas com a pressa de regressar á VIDA. Em cada um, habitavam já os sonhos e projectos futuros que as circunstâncias tinham adiado. Havia espaço ao sorriso aberto e despreocupado e as conversas estavam carregadas de futuro. Tínhamos pressa de viver. E os dias seguintes foram de isso exemplo.
Uma vez mais, era no Café Bento que a malta tinha encontro marcado. Todos, uns mais que outros, fomos à descoberta da outra face da Guiné. Era o gastar dos “Pesos” amealhados para a “festa” da despedida. Alguns terão vivido nestes dias, momentos que jamais se voltariam a repetir nas suas vidas.
Numa dessas tardes, na companhia de camaradas, subia a principal avenida da cidade a caminho da piscina da UDIB quando senti a necessidade de me apoiar num dos postes da iluminação pública. Um acesso febril, acompanhado de uma debilidade física crescente, fizeram-me desistir da planeada tarde na piscina. Pela primeira vez em toda a comissão, estava com paludismo. Lembras-te camarada? Ajudaste-me a regressar aos Adidos e, na enfermaria, foi confirmado o meu estado de saúde. E, mais uma vez aqui fiquei internado. Tinha sido à chegada e era agora à saída. Impossibilitado de gastar os pesos que havia guardado para estes dias, pedi-te que deles fizesses o melhor uso, porque de nada me valeriam na metrópole.
 No dia do embarque, deixei a enfermaria dos Adidos a bordo de uma carrinha militar, rumo ao aeroporto de Bissalanca, já praticamente recuperado do paludismo. Com emoção e uma incontida alegria, deixei que o meu olhar voasse, uma vez mais, sobre as últimas imagens daquela terra. Sentia, que as imagens colhidas naquele olhar me iriam acompanhar durante toda a vida.
 Era a hora de ocupar o meu lugar a bordo do Boeing da Força Aérea Portuguesa.
Vinte e dois meses depois, tinha-mos aprendido a viver e a conviver em circunstâncias muito particulares, tinha-mos criado amizades indestrutíveis, e crescemos. Crescemos muito. Decididamente não éramos os mesmos. Os verdes jovens que haviam chegado tempos atrás à Guiné, partiam agora mais maduros e mais preparados para as adversidades que a vida futura lhes colocasse no caminho. Esses tempos foram uma grande lição de vida.
Chegados a Lisboa, foi uma correria até à Calçada da Ajuda, pois era necessário despojarmo-nos de todos os haveres que a instituição militar entregou à nossa guarda. Era o “espólio”, essa palavra mágica que significava a rotura física com o nosso passado recente. Mas para o sofrimento, as memórias, os afectos e as amizades não haverá nunca espólio capaz de apagar as marcas que carregamos para a sua vida futura. Serão património do carácter, e da personalidade de cada um de nós.
E a correria continuaria depois até à estação de Santa Apolónia. Era preciso chegar a casa e o comboio rumo ao Porto não esperava. Fomos muitos neste trajecto. Para uma boa parte de nós, o destino era o Douro Litoral e o Minho. Lembras-te camarada? À saída de estação de Campanhâ partilhamos o mesmo táxi porque, para chegares a Leça da Palmeira, passaríamos pela minha casa em Matosinhos. Ainda hoje recordo o teu gesto de pagares a totalidade da despesa do táxi.
Cheguei a casa já pela madrugada. Bati à porta. Algum tempo depois surge ensonada a minha querida Mãe. Naquele tempo em nossa casa não havia telefone e, mesmo sabendo os meus familiares que eu regressaria naquele dia, não me esperavam aquela hora. O meu Pai continuou deitado até eu entrar no seu quarto. A minha Irmã, logo que se apercebeu da minha chegada, pulou da cama. Depois dos efusivos e apetecidos abraços, prolongamos até ao alvorecer do novo dia uma atmosfera de grande carinho e alegria. Faltava o meu Irmão, que tinha ido clandestinamente para França para fugir ao serviço militar. E faltava ainda a minha namorada que, logo pela manhã, apareceu lá em casa.  As boas notícias também chegam depressa e a sua presença foi um doce bálsamo.
Estava finalmente entre os meus e de regresso ao caminho para o meu futuro. Para trás ficara um tempo que me ajudou a ver o mundo e os homens com um olhar mais atento e generoso, fruto da convivência de espírito aberto com outras culturas. As realidades do mundo não se esgotam no horizonte em que nascemos.
Para vós camaradas que, chegados aqui com a vossa paciência e generosidade, não se cansaram de estar desse lado da mesa assistir às minhas narrativas, vai o meu abraço fraterno, de quem assume continuar a pertencer de corpo inteiro à grande Família dos ex-combatentes da Guiné, que se revêem no projecto da Tabanca Pequena.
Voltarei com : - “Retorno às memórias” - as “istórias” das minhas viagens à Guiné-Bissau.
Até Breve.
Zé Rodrigues  -  sócio nº 42  da Tabanca Pequena – Grupo de Amigos da Guiné - Apoio e Cooperação ao Desenvolvimento Africano
  

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