quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

P107-Poucos mas bons

Foi uma quarta diferente, a de hoje no milho-rei.
Apareceram só 6 camaradas.
Ficou tudo em casa a remoer as saudades dos que partiram África abaixo em busca das suas memórias doutros tempos.
Tivemos a grata visita (já que não é sempre que aparece) do nosso querido tertuliano Casimiro e falou-se, claro das nossas aventuras de há 40 anos e das mais recentes aquando das visitas feitas à Guiné há pouco tempo.
Foi um almoço tranquilo mas muito agradável como sempre.

Aqui vai a foto de família para a posteridade.
Alvaro Basto


P105-Sardinhas malandras

Eu "comentei": Eu também li isso. E fiquei admirado porque é que ainda não morri... desde pequenino que comi barrigadas de sardinha nos Santos Antónios de Lisboa, no Bairro Alto, em Alfama e na Madragoa, é claro. Salmão não, porque não havia, isto é, era muito caro na altura. Mas agora, que ele anda aí aos pontapés, tenho-me deliciado com salmão grelhado muitas vezes. Claro que nenhum cientista se debruçou ainda sobre os males causados pelo consumo de garoupa, pelos excessos com lagosta... mas já ouvi falar que andam a estudar os malefícios de comer bacalhau.Por mim, que hei-de morrer um dia, eu sei, ninguém me vai tirar umas sardinhinhas bem assadas.
E, acima, o que o Miguel Esteves Cardoso disse no "Público" de hoje.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

P102-Expedição humanitária parte de Portugal para Guiné-Bissau

Transcrição de mais uma noticia desta vez publicada pela Agencia Lusa, com a devida vénia, aqui vai:

Coimbra, 20 fev (Lusa) – Uma missão para ajudar a Guiné-Bissau partiu nesta sexta-feira de Coimbra.

O grupo de 22 pessoas vai atravessar o deserto em veículos 4x4 para montar o primeiro parque infantil da capital e uma creche no norte do país.

Os expedicionários, que cumprem neste ano a sexta missão humanitária, são na sua maioria ex-combatentes, com idade entre 60 e 65 anos, que levam consigo bens para oferecer, tendo já seguido para Bissau um contêiner de 25 toneladas de materiais diversos.

“Fui combatente na Guiné de 1966 a 1968 e volvidos 37 anos regressei para recordar os locais por onde passei, e quando cheguei vi as muitas carências e trouxe na bagagem a vontade de voltar”, disse José Moreira, que posteriormente dinamizou a criação da associação humanitária Memória das Gentes.

Desde então, anualmente, normalmente em fevereiro, partem de Coimbra em expedição.

Este ano seguiram sete veículos, a que se juntarão no deserto africano mais quatro motos e outro jipe, também do norte de Portugal.

Na expedição desse ano serão distribuídos material didático, camas para bebês, material hospitalar e medicamentos.

Além disso, eles vão montar o primeiro parque infantil de Bissau, com o apoio da prefeitura de Coimbra, que esperam deixar completamente concluído nos próximos dois anos, com novos equipamentos.

Em Varela, no norte da Guiné-Bissau, será montada uma creche.

Os missionários devem chegar nesta sexta-feira e pernoitar em Tânger.

A chegada à Guiné-Bissau está prevista para o dia 26.

O regresso do último grupo de expedicionários a Portugal está marcado para 16 de março.

“Não fizemos mais que a nossa obrigação”, afirmou o prefeito de Coimbra, Carlos Encarnação, referindo-se ao apoio disponibilizado pelo município ao país africano. Para ele, é “um orgulho” para a cidade ter uma organização com “valores humanos como tem a Memória das Gentes”.“É com muita simpatia que vejo estas pessoas partir, para ajudar a suprir algumas necessidades das pessoas da Guiné-Bissau”, disse o guineense Incanha Intumbo, que vive há 15 anos em Coimbra, onde prepara uma tese de doutorado sobre as variantes étnicas do crioulo de seu país.


P101-Guiné, aí vamos nós

Os nossos camaradas da Tabanca de Matosinhos, Xico Allen, Delfim Santos, António Carvalho, Silvério Lobo, "Nina", A. Pimentel, João Rocha, e José Pires partiram na passada sexta feira para a Guiné em mais uma viagem de saudade e solidariedade integrando a caravana da Assoc. Memórias e Gentes de Coimbra.

Eis um artigo notícia escrito por Patricia Isabel Silva no Diário de Coimbra sobre esta viagem





O contentor de 25 toneladas partiu há vários dias e já está em Bissau. A comitiva fez-se ontem à estrada para uma viagem de sete dias cheia de dificuldades
Vinte e duas pessoas, cinco mil quilómetros para percorrer, sete jipes. Na bagagem, doses ilimitadas de boa vontade e de esperança em ajudar a transformar a Guiné-Bissau num país melhor. Pelo sexto ano consecutivo, um grupo de cidadãos de Coimbra e do Porto ruma àquele país africano, onde chegará no dia 26 para distribuir as 25 toneladas de material recolhido nos últimos meses.Ontem, pouco antes das 9h00, o Largo da Portagem “vivia” uma adrenalina especial. Afinal, dali partiu a expedição, organizada pela Associação Humanitária Memórias e Gentes. E pode dizer-se que o vermelho é a cor da solidariedade para estes 20 homens e duas mulheres que se fizeram à estrada ontem de manhã. Todos vestidos com o impermeável propositadamente criado para esta missão, contaram com o apoio de dezenas de pessoas, entre as quais, o governador civil, Henrique Fernandes, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Carlos Encarnação, o vereador do Desporto, Luís Providência, o presidente da Casa da Guiné-Bissau de Coimbra, Julião Soares Sousa, ou o autarca de S. Martinho do Bispo, Antonino Antunes.Maria Idalina Travessa não escondia o nervoso “miudinho”. É uma das duas senhoras que vai enfrentar as agruras do deserto. E vai pela primeira vez, a acompanhar o marido, um dos ex-combatentes da guerra colonial que integra esta acção. Maria Idalina esteve até à última hora para decidir se embarcava ou não nesta aventura, mas os filhos lá a conseguiram convencer. «Vai ver se tenho lá algum irmão», disseram, a brincar.Sem nunca dizer que sim ao marido, lá foi tomar as vacinas para se precaver contra qualquer doença indesejada. Ou seja, «quem cala consente», adiantou. Bem disposta, deseja «ajudar alguma coisa» e que todos regressem bem, o que não aconteceu com o marido de Maria Idalina, há dois anos. «Veio de lá com malária», recorda.Caso tenha oportunidade de apadrinhar alguma criança, esta moradora da Póvoa do Varzim até já leva recomendação de uma das netas. Se for um menino, pode dar-lhe o nome de Renato e se for menina, Rita.Mais do que uma aventuraFernando Ferreira é um dos rostos desta missão humanitária. Não é ex-combatente, mas apaixonou-se pelo país desde que o pisou pela primeira vez. «Vamos levar uma migalha. É uma gota de água num mar tão seco», adiantou momentos antes da partida. «Há crianças que recebem o primeiro caderno, já a acabar o ensino básico», exemplificou o empresário de Taveiro.Numa altura em que o contentor de 25 toneladas já se encontra em Bissau, querem ser os próprios a desalfandegá-lo. «Não queremos que ninguém mexa», frisou, recordando que lá dentro está material didáctico, berçários, medicamentos, soro fisiológico e roupas para crianças.«Pela primeira vez, vamos tentar construir um parque infantil em Bissau», adiantou José Moreira, presidente da Memórias e Gentes, acrescentando que, através da autarquia, foram conseguidos dois escorregas. Há também um baloiço duplo e duas tabelas de basquete. É certo que o parque não ficará concluído, mas os elementos da missão não duvidam que, nesta primeira fase, serão mais do que suficientes para levar um sorriso ao rosto de cada criança que, pela primeira vez, viverá a emoção de experimentar um escorrega.Em Varela, no norte do país, será montada uma «creche completa» e, em Capiane, no sul, onde surgiram os primeiros sinais de cólera, haverá distribuição de medicamentos, que também chegarão a Quebu, Fulacunda, Buba e Catió. «É muito mais do que uma aventura», contou José Moreira, ex-combatente na Guiné-Bissau entre 1966 e 1968. Cada ida à Guiné representa uma nova emoção. A primeira vez, 37 anos depois da guerra, aconteceu há seis anos. «Quando regressei, verifiquei as carências que eram muitas e trouxe na bagagem vontade de voltar», recorda. Assim aconteceu. Até que, há dois anos, foi criada a Associação Humanitária Memórias e Gentes. Viagem custa 2.500 euros a cada participanteAs previsões apontam para uma viagem de sete dias. A noite de ontem foi passada na zona de Tânger, enquanto hoje a comitiva deverá pernoitar em Agadir. O terceiro dia será passado em Leon no Sahara Ocidental, o quarto na Mauritânia e os quinto e sexto dias no Senegal. O sétimo já será em solo guineense, acredita Fernando Ferreira, sem dúvida de que todos terão de enfrentar uma viagem «dura».«Não nos expomos a perigos, mas há dificuldades», frisou. São os policiamentos, os problemas nas alfândegas, os alojamentos. «Não é pêra doce», reconhece, mas nada que desmotive o grupo que, há seis anos consecutivos, dedica alguns dias a ajudar um povo distante em quilómetros, mas próximo, por afectividade.Não é de estranhar, portanto, que entre os jipes mais potentes circule uma carrinha Toyota Hiace, super carregada para que nada falte a estes homens e mulheres durante a aventura a milhares de quilómetros de casa. E num traçado que, em alguns pontos coincide com o do antigo Rally Dakar, não admira que ela, por vezes, tenha de ser rebocada. «Mas, chega lá», acredita Fernando Ferreira.Com apoios logísticos de várias instituições, a comitiva tem, no entanto, de suportar todos os custos da viagem. Ou seja, indica Fernando Ferreira, esta acção humanitária custa, aproximadamente, 2.500 euros a cada um dos elementos.O regresso não será feito em comitiva. Prevê-se a saída de dois carros juntos e que se viaje de dia e de noite, pelo que a duração da viagem será mais reduzida, frisou.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

P100-As novas caras da nossa Tabanca

Como temos vindo a referir, em cada quarta-feira dá-se uma renovação dos que por cá passam e deixam o seu contributo com a sua presença e com a sua amizade.
Desde há muito que nos habituamos a ver caras novas no Milho Rei às quartas feiras.
Na semana passada foi o Lucas de Mogadouro e outros que nos visitram e connosco confraternizaram. Infelizmente não consegui identifica-los de forma mais minuciosa.
Esta semana foi O Zé Manel Cancela da 2382 de A.Formosa e Buba, o Ângelo, filho do Lucas em representação do pai, o Manuel Ramos do Mindelo a Maria da Conceição Alves esposa e em representação do José Eduardo Alves conhecido pelo "Leça" que esteve em Mampatá com a 6250 e que neste momento integram a comitiva dos que esta manhã partiram para mais uma missão humanitária liderada pelos camaradas de Coimbra d Assoc. Memórias e Gentes.
O Lucas de Mogadouro professor em A. Formosa
Estiveram ainda o Manuel Graça da 15ª de Comandos que nunca saíu de Bissau (sortudo) e o Artur Ribeiro da CCAC 18 de A. Formosa.
Aqui vão algumas fotos dos nosssos novos revelados "tabanqueiros"
















O Manuel Cancela e o A. Carvalho


















O Angelo, Filho do Lucas de Mogadouro










O Manuel Graça daqui de bem perto, Do Monte dos Burgos















A Maria da Conçeição. esposa do "Leça" sentada à direita do Manuel Ramos do Mindelo

Como vêm, o Milho Reri tem vindo a constituir uma verdadeira placa giratória de camaradas que, com a sua presença, querem marcar posição nestas confraternizações semanais tão agradáveis.
Alvaro Basto

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

P097-"ORA DI BAI" RUMO À GUINÉ

O meu regresso a Gandembel. Que emoção !
Camaradas que ides partir de novo para a Guiné. Agora, voluntáriamente, sem lágrimas e com outro tipo de emoções e expectativas. Boa viagem.
Ainda recordo com emoção e prazer a minha segunda partida à procura de amigos e amigas que lá deixei. Lugares que me ficaram no coração, pelos momentos vividos, que pude recordar. A dor de alma por saber que ia encontrar outros lugares que foram para mim de grande sofrimento e até morte.
Precisava de passar de novo por tudo isso para me encontrar comigo próprio. Fazer desaparecer de dentro de mim os fantasmas. Quis experimentar segunda vez e há-de vir a terceira e mais, se Deus me der vida e saúde.Não posso ir convosco fisicamente, mas vou em espirito
Aos que vão para o Sul da Guiné, sobretudo para Mampatá Foreá, Quebo, Colibuia, Buba etc. levai um abraço fraterno do Fermero Tisserá.
Tende boa viagem e venham as fotos para sonhar de novo.

Um forte abraço do
Zé Teixeira

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

P092-As Nossas Quartas-Feiras Continuam bem Vivas

Temos estado todos tão calados que até parece que a Tabanca deixou de existir.
Mas enganem-se os que assim pensam, pois ela está mais viva do que nunca.
Pelo menos às quarta-feiras continuam os nossos encontros sepre renovados e a média tem vindo a manter-se nos 25 que se juntam à volta daquela mesa para comer beber, falar, trocar experiências, contar histórias e sobretudo confraternizar. Numa semana aparecem uns , na seguinte já aparecem outros mas a todos ligam os laços criados pela guerra que todos vivemos em África entre os paralelos 11 e 12 graus a norte do Equador.
Se não acreditam vejam a s imagens do Jorge Teixiera:

Quarta dia 4 de Fevereiro




Dia 11 de Fevereiro:







terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

P089-Amizades criadas, umas em acontecimentos vividos outras em lembranças partilhadas

Semanalmente, juntamo-nos em Matosinhos, no Milho Rei, em grupo variável mas sempre numeroso. Em cada encontro aparecem sempre novos nomes, encontram-se amigos do antes, conhecimentos de situações específicas, e geram-se novas amizades criadas com as lembranças de sítios diferentes mas comuns de vivências. Porque em todos os lados as coisas se passaram da mesma maneira: sangue, suor e... lágrimas também.

Na semana passada tivemos o grato prazer da presença do velho combatente e camarada de armas Rui Fernando Alexandrino Ferreira, que passou s suas lembranças de guerra na Guiné para o livro "Rumo a Fulacunda". Nele, o Rui Alexandrino reflecte muito bem o porquê e as condições em que se geraram as amizades:


«…Destacava-se de todas as demais e constitui no presente, sem sombra de dúvidas, não só como o elo que «une» o clã, mas também o fulcro das atenções, o convergir das evocações, «quanto» normalmente, por a todos pertencer, acaba por sobressair nas habituais reuniões, convívios e almoçaradas com que, os antigos combatentes do ex-Ultramar comemoram, um pouco por todo esse imenso Portugal, de lés-a-lés, ano após ano, os acontecimentos, façanhas, peripécias, aventuras e desventuras que ali viveram mas, sobretudo as grandes amizades que por lá se fizeram.
Amizades que alicerçadas nas adversidades e engrandecidas nas agruras da guerra que enobrecendo os sentimentos, criaram a nostalgia dos vinte anos aos quais se passou a associar o cumprimento do serviço militar. Este que na altura, por pesado era mal amado que, assim se viu lenta mas inexoravelmente transfigurado numa agradável melancolia, numa doce recordação, numa eterna saudade.
«Vinte anos» que profundamente marcados pelos penosos, duros e difíceis «tempos de guerra» durante os quais para conservar o equilíbrio emocional houve que «rir» dos tempos e «escarnecer» da guerra.
E se era imperioso aceitar como um facto consumado a fatalidade inevitável de nela ter de participar, muito mais era, quando tudo parecia virar-se contra nós, manter a fé inabalável e conservar a extrema convicção de que, como com tudo quanto ocorre e tem por «palco» esta vida que, sendo ela própria findável e efémera consequentemente o que dela depende ainda que, mau ou muito mau acaba, mais cedo ou mais tarde por ter um fim.
Assim, era com toda a legitimidade que cada um se limitava a esperar e desejar tão somente o final da sua própria comissão que, se parecendo dum incrível e inaceitável egoísmo resultava tão somente do facto de não se ver, não se prever nem mesmo se julgar possível por que maneira ou de que «bendita» forma tal pudesse vir a suceder para todos, com a brevidade que efectivamente se desejava.
Encontrada uma das explicações possíveis para a maneira sui generis como a grande maioria encarou não só a sua participação mas a forma como se comportou em campanha onde, todas as intenções, motivações e acções eram dominadas pelas incertezas e sobressaltos da guerra que, se fizeram emergir a grandeza de alma, a nobreza de comportamentos e a força moral de uns também colocaram em evidência as misérias, referenciando os inseguros, diminuindo os fracos e traumatizando os inadaptados, servindo de prova evidente da mais completa ingenuidade e da total inexperiência que se tinha da vida.»

domingo, 1 de fevereiro de 2009

P088-Os mortos ao nosso lado...

O que sentimos quando os vimos cair ao nosso lado, abatidos a tiro ou despedaçados com rockets ou minas... O João de Melo sentiu assim em Angola, como diz no seu livro "Autópsia de Um Mar de Ruínas". Na Guiné não foi diferente. As ruínas até foram maiores... cada um de nós sabe. Em vez de Amaral eu posso falar em Carlos, em vez de Cláudio posso dizer António. Todos temos nomes. Todos sabemos da loucura que nos deu na altura da morte deles.

«…Sabem como são os mortos? Ei-los dormindo boquiabertos e com as pálpebras enormemente esticadas: alguns têm a morte no ventre, outros nos dedos muito grossos, e são como os palhaços adormecidos entre dois números de circo ou no intervalo que separa o riso da sua infinita desgraça interior. O cadáver do soldado Amaral observava o circo e devia pensar que o mundo se enchera já de tudo o que não servia para nada. Eu saltara por cima dele, e senti que a solidão da eternidade me dava uma dentada na cabeça do pénis. Ouvi perfeitamente o meu grito, o grito das minhas pernas enroladas no seu corpo, e detive-me apenas um instante a observar-lhe a testa com um tiro: alguém devia ter feito pontaria às sobrancelhas muito revoltas, pois uma miserável pena de pássaro fora decerto disparada, como a seta por um arco, e entrara fundo no espaço da sua cabeça. A estranha morte repetia-se assim: da parte da frente, quase não se dava por ela, uma mordidela distraída, o fracasso ligeiro de um corno de peixe-agulha e nada mais. Porém, do lado de trás, ao centro da nuca do soldado Amaral, uma cratera com ovos abrira tudo: esguichavam bolas de sangue, miolos vomitados, rolos de cabelo misturados com esquírolas e lascas de couro. E então eu soube que estava no mais horrível momento e que toda a memória da minha vida tinha entretanto desaparecido.
Quem era eu?, pensei. Nunca estivera em outro qualquer lugar do mundo. Apalpava o meu corpo com as mãos incrédulas, e ele já não existia; tinha-me esquecido de todas as suas formas ainda há pouco familiares, precisava de ir à procura dele, recuperá-lo depressa, regressar com ele ao mundo de que nos havíamos perdido. Encontrado o corpo, corri por dentro dele, obriguei-o a mover-se para diante, ao encontro dos outros mortos, e os meus músculos eram manivelas, roldanas, estranhas rodas-dentadas ligadas a pequenos rodízios com ferrugem.
Quem sou eu?, pensei de novo. Quem sou eu, para ter de olhar o peito aberto do soldado Cláudio, as suas pernas abertas e flectidas, o olhar de virgem violentada no meio do canavial? Não sou capaz, não vou ser nunca capaz de contar os ossos, o rasgão dos punhais que tinham mordido muito fundo os seus pulmões. Não vou ser capaz de olhar e ver o modo como o granada estremeceu e estoirou as aduelas inúteis das costelas, varreu por dentro as migalhas dos miúdos ossos sem nome e acabou por anichar-se-lhe no estômago. Morde bem a língua, meu menino; fecha bem as mãos e agarra as madeixas de capim; espreme toda a esperança da terra e aperta o saco do teu corpo, onde guardarás as estrelas, as dragonas, o monóculo, o pingalim dos generais da tua guerra…
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