domingo, 25 de janeiro de 2009

P084-Antes da guerra (9)... Fui professor no Colégio dos Órfãos - I






Cheguei ao Colégio dos Órfãos, no Porto, em 16 de Março de 1963. Comigo chegou também o cabo-verdiano Jaime do Rosário (o tal que, mais tarde, fez parte da banda Os Tubarões). Eu fui dar aulas de Português e Francês ao 1.º ano e ele aos miúdos da 4.ª classe.

Este colégio existe ainda (mas não já com os mesmos objectivos) no Largo Padre Baltazar Guedes, ao fundo da Rua de S. Victor e ao cimo da escarpa virada para o Douro, para a ponte de D. Maria e para a boca do túnel de onde saíam os comboios que vinham de Campanhã para essa ponte.

Vale a pena contar um pouco da sua história:
Foi, no Porto, a primeira Roda dos Expostos - casas onde eram acolhidas, no século XVII, as crianças órfãs ou abandonadas pelos pais. Substituindo essa Roda, o padre Baltazar Guedes, em 21 de Novembro de 1651, fundou o Colégio dos Meninos Órfãos, fora dos muros da cidade, no Campo do Olival (hoje Campo dos Mártires da Pátria). As disciplinas eram: latim, música, náutica, desenho e outras artes. No seu testamento deixou esta instituição ao senado da cidade do Porto. Estava lá, em 1762, a Aula de Náutica e, em 1779, a Aula de Desenho e Debuxo. Em 1803, o governo pretendeu construir nos terrenos do Colégio um grande edifício para a Academia Real de Marinha e Comércio da cidade do Porto, que se transformou, em 1837, na Academia Polytechnica do Porto (cujo edifício é hoje da Universidade do Porto, nos Leões). Para isso, chegou a um acordo com a Câmara: o Estado dava-lhe trinta contos e ela abandonava a propriedade do seu colégio. Assim foi. O Colégio passou primeiro para a Rua dos Mártires da Liberdade, n.º 237, indo depois para as instalações chamadas do Seminário Velho, ao Monte do Prado do Bispo, perto do Cemitério do Prado do Repouso, onde ainda se encontra, no Largo Padre Baltazar Guedes. Em 1906 foi-lhe aí construída uma igreja. Em 1951, a Câmara Municipal do Porto, que continua proprietária, entregou a sua direcção aos padres Salesianos.

Também aí escrevi um diário. Vai um primeiro dia:

27 de Março de 1963 - Já estou no Colégio dos Órfãos do Porto. Fui à igreja do colégio. Está cravejada de indivíduos petrificados. Aquilo são santos?... Tremendamente ridículos. Até há alguns em cuecas... E quanta beata a acender velas e velinhas logo de manhã! Como se levantam cedo essas ratas de sacristia!...
Fui ao enterro do padre Cassiano Guimarães na sua terra transmontana. A doença matou-o. É duro ver amarelo, frio, estendido num caixão alguém com quem convivemos. Como diz o Saint-Éxupéry piloto de guerra, custa sentir que nunca mais os poderemos ver nesta vida, que não os poderemos ver ao nosso lado, que nem sequer nos poderão aborrecer. Quanto não dava eu agora para que ele me pudesse aborrecer... “Para sentirmos a morte, precisamos de imaginar as horas em que teria tido necessidade de nós. Mas ele já não tem necessidade de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E, descobri-la, dói. Precisamos ver a vida com perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço, no dia em que o enterramos. O morto só amanhã morrerá, quando houver silêncio. Só então se nos mostrará na sua plenitude, para se arrancar, na sua plenitude, à nossa substância. Nessa altura, havemos de gritar que parte sem nós o podermos impedir.”
Tenho o “Diário” manuscrito do Cassiano. Deu-mo há já algum tempo, quando lhe dei o meu para ler. Tinha uma perspectiva de vida diferente da minha, já esperava a morte e agarrava-se a uma crença.

O José Cerca publicou este diário na internet.






2 comentários:

  1. Gostei muito de ler e sentir um pouco desta tua história Marques...
    Professor ,Filosófo e combatente de guerra,quantas coisas pra contar...
    Boa semana....
    Um grande abraço ...´
    Lú.

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  2. Tsmbém conheço o Colégio dos Orfãos, mas como mãe de um antigo aluno (1982-1993). Tenho muito boas recordações de convivio, do Teatro e de participar para apoio de muitas actividades dos jovens. Hoje estou aposentada profissionalmente e a fazer uma licenciatura em História da FLUP. Estou a pesquisar matéria para o próximo ano lectivo para o Seminário do último ano. De pesquisa em pesquisa entrei neste saite. Estou comovida com o Diário do Padre Cassiano. Compreendo-o muito bem. Também senti que havia "alguns pratos vazios" e muita solidão...
    O Padre Cassiano há-de gostar de saber que ainda´gostamos de ler o que escreveu e sofremos por ele.
    Gostei muito do vosso saite.
    SAÚDE PARA TODOS E MUITA AMIZADE.
    Maria Luísa

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