segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

P078-Antes da guerra (8)... Filosofei muito, tanto que fiz com que corressem comigo da Filosofia



Uma primeira chamada de atenção ao Álvaro Basto: como podes agora ver, a batina tinha carcela desde o cabeção até aos sapatos.

16 de Janeiro de 1963 - Ontem á noite falei com o Director. Manifestei-lhe as minhas dificuldades em continuar. Pareceu concordar comigo... Mas hoje houve conferência! Aquele homem é indigno de ser chamado tal. Vai buscar o argumento das conferências a casos particulares. Usou o meu caso como assunto. Eu é que fui burro?... Não, porque era necessário que eu dissesse o que disse... Foi preciso tomar uma decisão… Não quero aumentar o número dos anódinos.
18 de Janeiro de 1963 - Anda lá fora o Inverno. O sol despenha-se já no horizonte e, lá longe, do oriente, vem subindo um véu sombrio que envolve a terra, lento e manso. Está frio. E anda frio dentro de mim. Há folhas caídas e folhas mortas pelo chão da minha vida. Os ventos levaram tudo, as chuvas tudo arrastaram, deixando-me despido de realidades que foram sonhos. O tempo é eterno e eu passo o tempo a ver passar o tempo, a vê-lo arrastar-se atrás dos ponteiros do meu relógio. Com saudades, tantas saudades de alguém na minha vida! E querem que eu sorria. Mas, para quê sorrir se não amo?... E como há-de sorrir quem só espera pela noite? Como há-de sorrir quem aborrece o dia? O dia faz-me viver com os “outros”, e eu aborreço os “outros”. Não creio nos seus ideais. Acho até que nem têm ideais. É que, se os têm, são tão mesquinhos e egoístas que não brilham. Muitos andarão aqui levados pela corrente, e vão, vão sempre em frente... levados. O tempo passa e eles vão atrás do tempo, atados a ele, moles e sem alma. Amo a noite porque, à noite, deixo de ser eu e, quando durmo, deixo de pensar. Fico... De mim nada existe, o corpo não o sinto... Mas, antes de dormir, enquanto ainda existo, fico a pensar, e penso nos “outros” que de dia detestei. À noite, só à noite, quando, a meu lado estendidos, os sinto respirar, dormir, e eu, cansado, ainda vivo, sonho acordado... Ó mãe, mãe, que és a razão da minha existência, queria que estivesses aqui a meu lado, queria esconder a cabeça no teu peito e chorar. Queria desabafar, mas não confio em ninguém. Queria que estivesses aqui a meu lado, teria tanta coisa para te dizer...
20 de Janeiro de 1963 – A minha irmã e o meu irmão vieram visitar-me e já lhes disse que a coisa está feia.
21 de Janeiro de 1963 – O bibliotecário padre Amador apanhou-me a mim e ao Gonçalves na zona proibida da Biblioteca, o “Inferno”, como lhe chamam. Só queríamos ver uns livros do Sartre e do Camus… Sarrazinou-nos.
5 de Fevereiro de 1963 - O Gonçalves encontrou a figueira... foi-se embora.
9 de Fevereiro de 1963 - O Director disse-me que eu interrompia a Filosofia e ia para o Porto, dar aulas num colégio que lá têm de miúdos pobres e abandonados. É para pensar, disse-me ele. Já estou farto de pensar! Mas está bem, vou continuar a pensar. É bom mudar disto tudo, deixar esta gente que detesto na sua maioria.

E, como vêem pelos resultados que tive, fui razoável em Filosofia, não mau em Português, mas não tão bom noutras matérias. Aliás, muitas vezes me dirigi interiormente aos clássicos: ó Aristóteles, ó Tomás de Aquino, qual é a lógica desta merda toda?!... Não me responderam.

1 comentário:

  1. Estranhei quando me falaste que se podia confirmar que a batina tinha botões da carcela até ao pescoço.
    É que só agora vi e li a tua postagem.
    Continuo a seguir os teus escritos com interesse.
    Vi que em matérias especifícas eras mesmo bom, o que se calhar era mau.Então aquela nota a Latim, porra, é demais. Quanto à nota de português ser igual a de "grego" isso me confunde. Amigo, prepara uma pequena dissertação nestes dois idiomas. Quero dizer, em grego e latim, embora julgue que este não é um idioma, será como o esperanto. Mas logo me ajudas a compreender.
    Um àparte de homens "entrados": Caramba ML, tu com aquela carinha não podias estar muito tempo no Convento. As garinas cá fora devem-se ter arranhado por ti.
    Um abraço de amizade.

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