domingo, 11 de janeiro de 2009

P073-Antes da guerra (7)... fui filósofo.

25 de Maio de 1962 - A irmã do meu amigo veio hoje visitá-lo. Antes não o fizesse. Fiquei encantado com ela. Adeus, amor! Ficarás no mais fundo do coração. Se alguma vez alguém te vier buscar, Deus queira que não estejas morto... Dorme, mas não morras. De vez em quando, grita, suplica-me para eu te alimentar. Alimentar-te-ei custe o que custar, com o meu próprio sangue, com a minha vida. O que eu não quero é que morras. Quero eu morrer, tu viverás eternamente. Quando eu morrer serás realidade. Agora, és aquela estranha sensação que sinto no fim dum sonho lindo. Fazes-me lembrar o sonho mais belo que tive até agora.
2 de Junho de 1962 - A vida é uma comédia. Às vezes, pensamos ser os protagonistas. Só no fim é que descobrimos que fomos o estrião. Vou esforçar-me por matar em mim o sentimento. Tem-me estragado a vida. Cada vez me convenço mais que a insensibilidade é o estado da verdadeira felicidade. Só me sinto bem quando estou longe dos outros. Só... comigo...
10 de Dezembro de 1962 - O riso é uma máscara com traços de mentira. Mas é preciso continuar a representar. Na minha vida só contam experiências negativas, impotências, esterilidade, fracassos. É que tudo me aborrece. Vivemos no século da publicidade, dos anúncios luminosos. No terreno comercial, é um verdadeiro desfalque e desperdício o que se faz para manter o prestígio de uma marca. Quantas listas de benfeitores e de donativos! Como parece bem!...
22 de Dezembro de 1962 - O que é um santo?... Um santo é um fantasma que ficou petrificado – em posição quase sempre incómoda – num nicho, rodeado de velhotas de pele encarquilhada.
1 de Janeiro de 1963 - Como é terrível dar o passo que há-de decidir de todo o rumo da nossa vida! Pesam-se os dois lados, tacteiam-se os dois campos... e em ambos há espinhos que picam e pesos insuportáveis. E se o rumo que tomamos é errado?... Vou correr a aventura.
7 de Janeiro de 1963 - É lamentável a falta de lógica que se nota em tanta gente. Contradizem a sua conduta com expressões demasiado dogmáticas, sem, ao menos, possuírem aquele bom senso que as poderia fazer calar. São o exemplo mais expressivo e mais real do princípio da contradição.
8 de Janeiro de 1963Hei-de interessar-me pelo que os outros possam dizer da minha deserção?... Quem me poderá julgar? Quem terá a base necessária para me julgar com equilíbrio? A maioria pertence à categoria dos superficiais... os que imaginam e supõem... E, por conseguirem imaginar e supor, quantos juízos e considerações dogmáticas! Deles não devo temer nada. Interessa-me o que dirão os espíritos profundos, esses que sabem distinguir... e esses são os que eu estimo. Como o padre Abbá, que me disse outro dia, amigavelmente, que a vida não é só aqui, que lá fora também há vida. É o único que me compreende, ele e o meu amigo Gonçalves. Temos falado. E ele ouve-me calmamente. Os charlatães só podem iludir o “Zé Povinho”. Mas há tanto charlatão e tanto papalvo por aí... Há uma certa semelhança entre eles e o “ápeiron” de Anaximandro: dizem tudo mas não possuem nada. São superficiais, nunca baixaram à medula... Só os que eu estimo baixaram lá. Só a estes deixei penetrar no meu “eu”, porque é a minha essência, privada do fictício e do acessório... E depois da minha deserção com quem posso contar? Comigo mesmo. Não me refiro ao “eu” ostensivo, mas a um outro “eu” que encontrei dentro de mim num momento de extrema debilidade.... É lá – no meu “eu” espiritual – que não pode entrar nenhum estranho; é lá que se encontra – que eu encontro – um lugar seguro. Quando me vir perseguido hei-de refugiar-me lá, baterei a porta na cara dos perseguidores... Poderão bater, escoicinhar... a “mim” é que não poderão chegar.


E Virgílio Ferreira continua a ser, com a sua magistral escrita, uma grande referência para mim:
«(...) o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exactamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. Exactamente porque só é fútil e ingénua a infância dos outros - quando se não é já criança.»

4 comentários:

  1. Li o teu post, caro amigo.
    Quanta sensibilidade. E não há ninguem que nos deva criticar, sem pelo mínimo ter passado por igual. E mesmo assim, as reservas são muitas. Porque só há um "eu".
    Um abraço de amizade

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  2. O Marques... aquelas batinas tinham botõzinhos desde o pescoço até ao chão não era? Nunca percebi....aquilo era tudo carcela pá?

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  3. Ah! Como é tocante, para mim, ler estas tuas interpelações - deixa-me chamar-lhes assim - que fazias à sociedade, áquele mundo intra e extra-muros...e como eram muros aqueles muros!
    Obrigado, por escreveres tão bem e por não guardares só para ti a tua eloquência e sensibilidade.
    A Tabanca Grande e a Tabanca Pequena precisam muito de ti.
    Um abraço.

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  4. É para o Álvaro
    Na próxima semana vou mostrar como eram os botões das batinas e até onde iam. Fica para a próxima.

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