2 de Junho de 1962 - A vida é uma comédia. Às vezes, pensamos ser os protagonistas. Só no fim é que descobrimos que fomos o estrião. Vou esforçar-me por matar em mim o sentimento. Tem-me estragado a vida. Cada vez me convenço mais que a insensibilidade é o estado da verdadeira felicidade. Só me sinto bem quando estou longe dos outros. Só... comigo...
10 de Dezembro de 1962 - O riso é uma máscara com traços de mentira. Mas é preciso continuar a representar. Na minha vida só contam experiências negativas, impotências, esterilidade, fracassos. É que tudo me aborrece. Vivemos no século da publicidade, dos anúncios luminosos. No terreno comercial, é um verdadeiro desfalque e desperdício o que se faz para manter o prestígio de uma marca. Quantas listas de benfeitores e de donativos! Como parece bem!...
22 de Dezembro de 1962 - O que é um santo?... Um santo é um fantasma que ficou petrificado – em posição quase sempre incómoda – num nicho, rodeado de velhotas de pele encarquilhada.
1 de Janeiro de 1963 - Como é terrível dar o passo que há-de decidir de todo o rumo da nossa vida! Pesam-se os dois lados, tacteiam-se os dois campos... e em ambos há espinhos que picam e pesos insuportáveis. E se o rumo que tomamos é errado?... Vou correr a aventura.
7 de Janeiro de 1963 - É lamentável a falta de lógica que se nota em tanta gente. Contradizem a sua conduta com expressões demasiado dogmáticas, sem, ao menos, possuírem aquele bom senso que as poderia fazer calar. São o exemplo mais expressivo e mais real do princípio da contradição.
8 de Janeiro de 1963 – Hei-de interessar-me pelo que os outros possam dizer da minha deserção?... Quem me poderá julgar? Quem terá a base necessária para me julgar com equilíbrio? A maioria pertence à categoria dos superficiais... os que imaginam e supõem... E, por conseguirem imaginar e supor, quantos juízos e considerações dogmáticas! Deles não devo temer nada. Interessa-me o que dirão os espíritos profundos, esses que sabem distinguir... e esses são os que eu estimo. Como o padre Abbá, que me disse outro dia, amigavelmente, que a vida não é só aqui, que lá fora também há vida. É o único que me compreende, ele e o meu amigo Gonçalves. Temos falado. E ele ouve-me calmamente. Os charlatães só podem iludir o “Zé Povinho”. Mas há tanto charlatão e tanto papalvo por aí... Há uma certa semelhança entre eles e o “ápeiron” de Anaximandro: dizem tudo mas não possuem nada. São superficiais, nunca baixaram à medula... Só os que eu estimo baixaram lá. Só a estes deixei penetrar no meu “eu”, porque é a minha essência, privada do fictício e do acessório... E depois da minha deserção com quem posso contar? Comigo mesmo. Não me refiro ao “eu” ostensivo, mas a um outro “eu” que encontrei dentro de mim num momento de extrema debilidade.... É lá – no meu “eu” espiritual – que não pode entrar nenhum estranho; é lá que se encontra – que eu encontro – um lugar seguro. Quando me vir perseguido hei-de refugiar-me lá, baterei a porta na cara dos perseguidores... Poderão bater, escoicinhar... a “mim” é que não poderão chegar.
22 de Dezembro de 1962 - O que é um santo?... Um santo é um fantasma que ficou petrificado – em posição quase sempre incómoda – num nicho, rodeado de velhotas de pele encarquilhada.
1 de Janeiro de 1963 - Como é terrível dar o passo que há-de decidir de todo o rumo da nossa vida! Pesam-se os dois lados, tacteiam-se os dois campos... e em ambos há espinhos que picam e pesos insuportáveis. E se o rumo que tomamos é errado?... Vou correr a aventura.
7 de Janeiro de 1963 - É lamentável a falta de lógica que se nota em tanta gente. Contradizem a sua conduta com expressões demasiado dogmáticas, sem, ao menos, possuírem aquele bom senso que as poderia fazer calar. São o exemplo mais expressivo e mais real do princípio da contradição.
8 de Janeiro de 1963 – Hei-de interessar-me pelo que os outros possam dizer da minha deserção?... Quem me poderá julgar? Quem terá a base necessária para me julgar com equilíbrio? A maioria pertence à categoria dos superficiais... os que imaginam e supõem... E, por conseguirem imaginar e supor, quantos juízos e considerações dogmáticas! Deles não devo temer nada. Interessa-me o que dirão os espíritos profundos, esses que sabem distinguir... e esses são os que eu estimo. Como o padre Abbá, que me disse outro dia, amigavelmente, que a vida não é só aqui, que lá fora também há vida. É o único que me compreende, ele e o meu amigo Gonçalves. Temos falado. E ele ouve-me calmamente. Os charlatães só podem iludir o “Zé Povinho”. Mas há tanto charlatão e tanto papalvo por aí... Há uma certa semelhança entre eles e o “ápeiron” de Anaximandro: dizem tudo mas não possuem nada. São superficiais, nunca baixaram à medula... Só os que eu estimo baixaram lá. Só a estes deixei penetrar no meu “eu”, porque é a minha essência, privada do fictício e do acessório... E depois da minha deserção com quem posso contar? Comigo mesmo. Não me refiro ao “eu” ostensivo, mas a um outro “eu” que encontrei dentro de mim num momento de extrema debilidade.... É lá – no meu “eu” espiritual – que não pode entrar nenhum estranho; é lá que se encontra – que eu encontro – um lugar seguro. Quando me vir perseguido hei-de refugiar-me lá, baterei a porta na cara dos perseguidores... Poderão bater, escoicinhar... a “mim” é que não poderão chegar.
E Virgílio Ferreira continua a ser, com a sua magistral escrita, uma grande referência para mim:
«(...) o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exactamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. Exactamente porque só é fútil e ingénua a infância dos outros - quando se não é já criança.»
Li o teu post, caro amigo.
ResponderEliminarQuanta sensibilidade. E não há ninguem que nos deva criticar, sem pelo mínimo ter passado por igual. E mesmo assim, as reservas são muitas. Porque só há um "eu".
Um abraço de amizade
O Marques... aquelas batinas tinham botõzinhos desde o pescoço até ao chão não era? Nunca percebi....aquilo era tudo carcela pá?
ResponderEliminarAh! Como é tocante, para mim, ler estas tuas interpelações - deixa-me chamar-lhes assim - que fazias à sociedade, áquele mundo intra e extra-muros...e como eram muros aqueles muros!
ResponderEliminarObrigado, por escreveres tão bem e por não guardares só para ti a tua eloquência e sensibilidade.
A Tabanca Grande e a Tabanca Pequena precisam muito de ti.
Um abraço.
É para o Álvaro
ResponderEliminarNa próxima semana vou mostrar como eram os botões das batinas e até onde iam. Fica para a próxima.