Depois destes dias de jingle bell, bom natal, feliz ano, tantas prendinhas para o menino, vê lá não bebas muito, não chateies ninguém porque é dia de festa, vou voltar ao que nunca esqueci, aos meus tempos de seminarista em Manique. Vai mais um copo.
Mas, primeiro, deixem-me lembrar novamente Virgílio Ferreira na sua "Manhã Submersa":
«(...) Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas «comovente»... Dói-me o que sofri e «recordo», não o que sofri e «evoco».
3 de Maio de 1961 - Depois de ouvir as façanhas dos soldados portugueses em Angola, ponho-me no lugar deles. Sonho com mil combates dos quais sou o herói... Tenho muitos sonhos desses. A maior parte das vezes saio vencedor, mas há vezes em que morro. No entanto, é sempre cercado de glória, sempre como um herói, sempre louvado e recordado pelos vivos. E eu, mesmo depois de morto, assisto à minha exaltação, ouço os comentários desvanecedores e o meu nome pronunciado por milhares de bocas, com uma série infinda de pontos de exclamação e admiração... Mas, quando acordo, acho melhor estar vivo.
15 de Maio de 1961 - O Gonçalves contou-me a história daquele seminarista que, desgostoso com a sua vida de clausura, despiu a sotaina, pendurou-a numa figueira e fugiu, saltando o muro do seminário. Também a mim me dá desejo de deixar esta grandessíssima porcaria. Se eu ao menos encontrasse uma figueira para pendurar todos os meus comlpexos, todas as minhas frustrações, todas estas cadeias que me rodeiam dia a dia e nas quais eu me vou deixando enlear... Falei com o Director Espiritual sobre os meus problemas sexuais. Mas que grande merda! Julga-me uma criança... “Estás a tornar-te um homem”. Há mais de três anos que me andam a dizer isto. Ainda não terei mudado nada?! E dão-me a ker livros que eu já devia ter lido há mais de três anos... Essa literatura para mim já não apresenta novidade nenhuma. Quando me dão a ler livros desses já eu há muito tenho ultrapassado o que neles vem escrito. E de que maneira! Além isso, como pode dar resultado uma direcção espiritual que sou obrigada a ter com um indivíduo que para isso é uma autêntica nulidade?
18 de Junho de 1961 - Hoje apetece-me saltar o muro... Mas, ai de mim se o salto! Serei tido como ladrão, hipócrita... Andei a enganar os superiores! Malandro! Roubei todos aqueles contos de réis que a congregação gastou com a minha educação. Serei verberado nas conferências, nas aulas. Coitado. Aquilo que tiver dito em particular será relatado da cátedra. Cátedra... que gozo. Como esse móvel por si tão nobre tem sido tão ultrajado! Serei verberado da tribuna do charlatão – isso sim – do charlatão que aproveita a falência do seu rival para valorizar a sua mercadoria. Como ficam fulos estes idólatras quando o seu deus cai do pedestal!... Se o ídolo ainda ficou incólume, tratam eles de o afeiar. Depois, pregam aos outros o Deus verdadeiro, irritados pelo seu erro... É um género de vingança, porque me deixaste ficar mal.
7 de Julho de 1961 - As insinuações serão uma táctica pedagógica?... Talvez façam parte da tão apregoado sistema preventivo, do qual têm tanta cagança...
16 de Julho de 1961 - Talvez eu tenha sido sincero demais. Quantos o terão sido como eu?... Eu e a minha estupidez, a minha infantil boa fé. Por ter falado das minhas masturbações sofro agora as consequências.
31 de Julho de 1961 - Submeto-me à vossa vontade, meu Deus, mas peço-vos permitais que eu desabafe a minha dor no pranto, na solidão. Mas acho que já tenho chorado demais para a minha idade e a solidão tem sido, nestes últimos dias, minha fiel companheira. Fiel, muito fiel. Por toda a parte. Mesmo quando estou com os outros. Não viestes vós trazer o amor ao mundo?... Mas não o vejo nem sinto. Quando julgo ver ao longe a sombra desse amos – aquele com que eu sonhei! – corro, mas – oh, desengano! – tanto mais dolorosa é a desilusão quanto mais desejado era o ilusor. Não era aquele o vosso amor? Aquele amor com que eu sonhei não é o que vós viestes trazer ao mundo? Se é, para que trouxestes, então, um amor que atormenta as aspirações humanas? Um amor que a maioria não atinge?... Um amor não para todos, mas só para os eleitos?...
6 de Agosto de 1961 - A maior dor de quem sofre é ser desconhecida a sua dor. Quando se sofre é sempre bom ter alguém que compartilhe da nossa dor.
15 de Agosto de 1961 - Começa a atacar-me a tristeza. Como são salgadas as lágrimas da dor!...Hoje rezei. Aguns rezam com uma esperança florida, o coração em festa. Outros haverá, certamente, como eu, que rezam orações de defuntos, nos lábios uma flor fanada...
16 de Agosto de 1961 - Muita alegria externa, muita dor no coração. Sabes, papel, o que é andar triste quando os outros estão alegres?... Sabes o que é não poder participar na alegria dos outros?... Estar triste pelo mesmo motivo por que os outros estão alegres?...
25 de Setembro de 1961 - Como são ridículos os juízos humanos! Que sabem aqueles senhores do Capítulo para poderem julgar? Quinze dias antes passeiam a consciência pelos corredores, por entre os cedros, espreitando com afã... Depois, em reunião, podem, com a consciência descansada, deixar escorregar pela caixa um miserável feijão preto. Um feijão preto que dará forças a um pobre para muitas noites e muitos dias?... E o Espírito Santo?! O Espírito Santo é Deus, e Deus só pode permitir o mal, nunca querê-lo – assim pregais!
25 de Outubro de 1961 - Vi no céu uma estrela cadente. Será a minha?... Não, porque no céu não brilha a minha estrela. Percorre outros caminhos, triste.
18 de Dezembro de 1961 - Falou-se muito sobre Goa. Os goeses Óscar e o Fremioth acham que foi natural, pois Goa é Índia. Se calhar têm razão.
O "terrorismo" em Angola e a "invasão" de Goa eram temas muito falados pelos padres, sempre dentro da linha governamental, claro.
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Gostei de ler.
ResponderEliminarContinua.
Um abraço
Obrigado por partilhares connosco coisas tão íntimas.
ResponderEliminarUm abraço
É a verdade. A minha. Que nunca escondi e da qual não tenho vergonhaliás, como disse Mallnaga Varsayayana, "vergonha é ser casado e não ter onde se ponha". Não li o Kamasutra todo, mas parece-me que disse isso algures...
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