sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

P036-Antes da guerra (5) ...quando a cabeça já estava à tona d'água na minha "manhã submersa" - I

Lá saí de Mogofores e fui para Manique, do Estoril. Aí fiz, primeiro, o Noviciado (fiz voto de pobreza, castidade e obediência… obediência e pobreza tinha que ser, não havia remédio, mas quanto à castidade havia, o que estava à mão, é claro …), fazendo a seguir um ano e pouco de Filosofia (hão-de ver porquê). Foi quando comecei a pensar e a ver o que era aquilo.
Já o Virgílio Ferreira dissera no seu livro “Manhã Submersa” em 1954:
“(...) Quando algum de nós se afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância alarmada dos perfeitos o trazia de rastos cá para fora. Os superiores sabiam que, à pressão exterior, cada um de nós podia refugiar-se no mais fundo de si. Como sabiam também que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada. Nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa íntima liberdade. Por isso nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua, havia ainda o receio de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os outros e ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de ladrilhos”.
A partir de uma certa altura comecei a fazer um diário, um afastamento para dentro de mim próprio. Todos conhecem ex-seminaristas, certamente, mas talvez não imaginem como era as suas vidas, as amarguras e traumas sofridos. Vou dando alguns excertos, os mais significativos, e por etapas. Não quero fazer a história da minha vida, apenas fazer ver que espíritos e mentalidades, não preparados para isso, andaram envolvidos em “ver matar e morrer”, como disse o João de Melo. Poucos estariam, mas eles (conheço vários ex-seminaristas que estiveram na guerra) até tiveram uma preparação para o contrário.
6 de Março de 1961 - Chamaram-me singular. Porque é que eu sou “singular”?... Por eu não ser como os outros?...Às vezes vou para dentro de água quando os outros não estão lá; outras, enquanto eles lá estão não me apetece tomar banho e, portanto, não vou. Porque terei de ser como eles?!... Não posso ser eu próprio? Terei de ser, de agir como todo o rebanho?...
23 de Março de 1961 - Fartam-se de dizer que este ou aquele indivíduo são pessoas de virtude, almas boas. Mas eu não vejo onde está a virtude deles, dos que me cercam. Noto, sim, que não me compreendem, uma incompreensão flagrante, um alheamento dos problemas dos outros, um auto-aperfeiçoamento egoísta, presuntivos “olhar só para Deus” e “cuidar da salvação”. E isto contra todos os princípios que o seu pretenso Mestre lhes deixou. Será isso ser virtuoso?... Pode ser que sim...
18 de Abril de 1961 - O Bom Pastor... Hoje é dia do Bom Pastor. A mim custa-me a acreditar que ele cuida de mim em particular. Sinto-me lançado, posto a um canto. Do género “desenrasca-te”. Tudo me tem corrido mal.
19 de Abril de 1961 - Em tudo o que faço há-de haver sempre alguém para dar o seu veredicto e fazer a sua interpretação, sempre contra. Eu sei que tenho cometido faltas. Mas porque hão-de elas pesar sempre sobre as minhas acções e intenções presentes? Há indivíduos que estão sempre debruçados sobre o passado. Quando levantam a cabeça para encararem o presente os seus olhares míopes não conseguem vê-lo sem continuarem a ter as outras coisas impressas na retina. São as tais pessoas caridosas que ainda carregam mais na cruz de cada um. Hoje não andava cá nos meus dias “sim”. Pois ainda houve alguns senhores que me vieram chatear.
20 de Abril de 1961 - Eu gostava de ser alegre. Mas não, não pode ser. A alegria é o amor satisfeito. Eu sonhei com um ideal de amor, um tipo de amor que possuo em mim, mas que não encontrou satisfação em parte alguma... nem em Deus. É escusado: nunca a vontade encontrará o objecto dos seus desejos... nunca terei alegria. Nunca encontrarei o outro amor igual ao meu. É estranho que Deus esteja nas criaturas. Não o vejo lá. Serei, acaso, obrigado a procurar Deus em toda a parte?... Um Deus invisível, barbudo... Um Deus que me obriga a amá-lo... Assim como Ele é grande, é também grande a tarefa de procurá-lo somente a Ele em toda a parte. Deus é amor. Já me disseram tantas vezes!... Mas eu não compreendo. É tão penoso procurar a Deus.
O Esparteiro da fotografia também esteve na Guiné como alferes miliciano, creio que em Mansoa. E lá casou com uma libanesa...




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