“Istórias” da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau
CONVERSAS Á MESA COM CAMARADAS AUSENTES
2 - A VIAGEM PARA A GUINÉ
As imagens repetidamente difundidas pela RTP dos embarques de militares com destino às colónias enraizaram a ideia da inevitabilidade de que um dia chegaria a nossa vez. E no dia 17/05/1970 no Cais de Alcântara encontramo-nos defronte do velho “Carvalho Araújo”, a bordo do qual seríamos transportados para a Guiné.
Na azáfama do embarque assalta-me a estranha sensação de rotura eminente com o meu passado. Percebi, como em nenhum outro momento da minha vida, que o meu futuro estava somente nas minhas mãos e na minha capacidade e instinto de sobrevivência.
Eras ainda nesse momento camarada, devido ao nosso paralelo percurso militar e á forte amizade alicerçada na identificação em valores comuns, o único elemento de apoio com que contava perante o futuro próximo que se percebia difícil.
Assistimos na amurada do navio aos acenos com que, familiares e amigos, se despediam de alguns de nós. Como eu desejava encontrar naquela pequena multidão um aceno que me fosse dirigido embora, já soubesse que tal não seria possível. Não consegui evitar um enorme vazio e uma dor tão funda que só os que muito amam os que ficam, podem sentir.
Mantivemo-nos praticamente todos na amurada até que deixamos de ter a terra á vista. Ampliamos a nossa capacidade de alcance visual, quase como quem se recusa aceitar o afastamento que se estava a consumar. Ainda com este estado de alma, fomos chamados para a primeira refeição a bordo.
Lembram-se camaradas como nos congratulamos com o “fígado de cebolada com batatas cozidas”? Estávamos perante um manjar dos deuses, depois de semanas a “ração de combate” e de refeições miseráveis que nos serviam em Viana do Castelo durante o IAO. Depois da avalanche de emoções geradas pela partida, esta primeira refeição foi uma nota positiva para adoçar a adaptação às novas rotinas a bordo. O nosso Mundo era agora o navio e, à medida que as horas foram passando tomamos consciência da forma desumana como estávamos a ser transportados, principalmente as praças. Ao que nos disseram depois, o velho “Carvalho Araújo” era usado no transporte de gado bovino entra as Ilhas Açorianas e entre estas e o Continente. Constatamos esta realidade quando visitamos os “aposentos” de alguns camaradas que viajavam nos porões, onde haviam sido construídos beliches em madeira a toda a altura dos mesmos e, se percebia ainda o odor a fezes dos bovinos.
Triste sorte a de muitos que, resignados, aceitavam passivamente esta realidade, como se aceitava a incerteza das contigências da guerra que nos esperava.
Do entusiasmo pela primeira refeição, passei á tortura dos enjoos que tornaram intragável qualquer refeição que, noutras circunstâncias poderia ser deliciosa. Por curiosidade e necessidade desloquei-me á descoberta da enfermaria do navio para encontrar remédio para os meus males. Apesar de medicado, foi pouco o alívio conseguido.
A maioria das praças repartia-se diariamente pelo convés, dispersos em pequenos grupos, ocupados no passatempo predilecto para entreter o tempo “a lerpa”. Eram frequentes manifestações de euforia e de quando em vez alguns impropérios quando as coisas davam para o torto.
E neste rodar do tempo a distância para o nosso destino encurtava a cada hora.
Sensivelmente a meio da viagem, quando o sol já se havia escondido, fomos surpreendidos por belas imagens em que eram visíveis com nitidez as iluminações daquilo que nos pareciam ser avenidas marginais. Passava-mos junto às Ilhas Canárias e alguns vaticinavam que as imagens seriam de Las Palmas.
Por esta altura, fomos todos bruscamente alertados para uma situação de emergência. A aflição na procura dos coletes de salvamento e do local á proa e á ré que nos foram sendo indicados, indiciavam que era um treino de emergência ou seria, como alguns já afirmavam, um incêndio a bordo. Acreditem camaradas, nunca cheguei a saber qual a verdadeira razão para tanto aparato, mas não há dúvida que criou a bordo um clima muito tenso e preocupante.
No alvorecer de mais um dia a bordo fomos mais uma vez surpreendidos com “terra á vista”.
Será a Guiné, interrogavam-se alguns? O navio apontava a proa para entrar numa grande baía, rodeada de montes escarpados e agrestes, sem qualquer vegetação visível e, ponteada aqui e ali de velhas carcaças de embarcações de razoável porte e em que se aconchegava uma povoação de aspecto simples e acolhedor. Chegamos á Ilha de S. Vicente e á cidade de Mindelo em Cabo Verde. Desembarcamos para algumas horas de descontracção em terra firme e logo nos fizemos ao caminho até a Cidade. No pequeno estabelecimento em que entrou o nosso grupo começaram a saltar as cápsulas das garrafas de cerveja e foram saboreadas as poucas bananas da terra que estavam expostas no balcão.
Ao entardecer a viagem prosseguiu.
Sentíamos a proximidade da costa continental africana e, se dúvidas houvesse, bastava sentir o quanto escaldava a certas horas o varandim de madeira da amurada do navio, da imensa quantidade de algas que flutuavam no mar com se de ilhas vegetais se tratasse e, dos peixes voadores que apareciam como por encanto.
Por estes sinais e pelo que nos dizia o instinto, o nosso destino aproximava-se rapidamente.
Até que os nossos olhares começarem a distinguir palmeiras e casario razoavelmente
alinhado.
Decorria o dia 25 de Maio de 1970 e tínhamos Bissau á vista.
A curiosidade e o medo do desconhecido dominavam as nossas emoções.
Continua…………
Caro Zé Rodrigues
ResponderEliminarNarras a reviver o passado.
Situação muito real e próxima.
Vamos aguardar, com alguma ansiedade, o desenrolar dos próximos capítulos.
Simples e directo como se deseja.
Abraço, do
Santos Oliveira
Força Zé Rodrigues:
ResponderEliminarEscrever bem é isso mesmo: de forma perceptível e do fundo do coração. Contínua, pois, pela amostra, vêm aí outros cenários de uma vivência bem intensa.
Um abraço do
Carvalho de Mampatá