quinta-feira, 28 de maio de 2009

P179(a) - Recordação do Alferes




Falam-me de tempo. Já nem me lembro há quanto tempo foi mas foi muito.
Tinha, naquele tempo, a tranquilidade intranquila dos jovens e uns dezassete anos mal feitos. O meu corpo fino, sempre que alguma folga mo permitia, dançava no empedrado dos passeios, saia rodada, camisa de alças escorrendo pelo ombro direito, sandálias rasas, prisioneira de uns óculos escuros, muito anos 60. Voltava do liceu debaixo dum sol escaldante, rasgava a garganta com o frio dum gelado e ouvia-o falar de guerra enquanto lambuzava as mãos nos pingos do gelado que ele me comprara e que não resistia ao calor.
Ainda lhe vejo a figura com pormenor: Uma espécie de bola com pouco mais do que o meu metro e cinquenta e cinco de altura, óculos redondos na ponta do nariz, farda verde e bivaque. Era alferes, nascera em Aveiro, salvara-se a tempo de um seminário que o condenaria a um sacerdócio escusado, cursara filosofia e sorria sempre que me acompanhava.
Eu, pouco atenta, (orgulhosa do namorado mais velho e de patente) descrevia em pormenor (e numa linguagem por vezes interdita) os eventos do dia, detalhando as cores dos pirolitos do intervalo grande ou o número de cigarros fumados na casa de banho, nesse mesmo intervalo.
Ele dizia-me que os cigarros me faziam mal à saúde e pedia para nos sentarmos na esplanada da Princesa. Eu sentava-me, enrolava as pernas bronzeadas debaixo da cadeira e via, sem entender bem, a preocupação com que desviava o olhar da nesga de coxa provavelmente visível, prosseguia a minha história, (porque tinha sempre uma história para contar) e despejava para cima dele umas quantas mentiras quando, ansioso, perguntava se ainda gostava do tal colega a quem eu, tempos antes, lhe declarara oficialmente como sendo o homem da minha vida. Que não, respondia eu, o amor não acontecera, porque afinal na vida tudo era relativo, até o amor.
Então ele ria, aproximava um suspiro e perguntava quando podia visitar-me em casa, formalizar o que havia entre mim e ele, com o responsável consentimento paterno.
Era então a minha vez de entreabrir a boca num sopro e ficava congelada no abraço daquele sol africano. Olhava-o e dentro de mim não sabia exactamente quando aqueles encontros se iriam desfazer.
Nos seus pensamentos tudo fazia sentido, afinal eu estava a um passo da faculdade e ele já abandonara o seminário e a sua própria universidade. Uma Vida à minha espera, dizia ele, eu, olhava-o com o sono de quem se levanta às seis horas da manhã, e congelava ao toque da mão que me estendia um pastel de nata para colmatar um lanche não resolvido com o gelado e aproveitar sorrateira e respeitosamente para me tocar a mão.
.Nos seus pensamentos tudo fazia sentido, nos meus, também, mas um sentido contrário. “Não tenho coração”, pensava eu quando ele me deixava
perto da minha casa, depois de darmos de raspão uma última mirada às águas tranquilas do Índico.
Achava ridícula a conversa e sorria envergonhada da minha atitude fútil e parva e da forma como o fazia desperdiçar o tempo na esperança de um Amor que no meu caso se escrevia com “a” minúsculo.
Decidi então que num dia próximo, quando ele me fosse buscar de carro à explicação de alemão, encheria o peito de ar e dir-lhe-ia que o seu nome não cabia na estranheza da minha história.
Mas ele queria factos concretos e sorriu achando que era mais uma brincadeira saída da minha cabeça em tempestade, mergulhou na imensa certeza do seu amor, viu em mim a imagem de uma menina mulher, arranjou um nome para explicar a ilegitimidade das minhas experiências, concentrou-se nos meus verdes, apostou em me dar do mundo uma outra fotografia e rumou para a minha casa.
No jardim havia duas acácias grandes, prenhes de flores, de uma copa perfeita. Ao fundo o mar. Sentado em contemplação, o meu pai tomava o drink do final do dia. Havia uma espécie de moldura de felicidade comum às horas mágicas do anoitecer africano.
Na rua, eu à beira de um sobressalto sísmico, com o coração cada vez mais longe daquela ideia de amor e felicidade, ouvindo até o respirar das folhas caindo na relva, pensei no exercício penoso de sobrevivência que me esperava e disse-lhe. “ vou contar-te tudo, sem mentir, enquanto o sol não se põe.”
E contei tudo, em voz baixa, grave, dizendo que afinal o Amor tem este grau de incompreensão que eu considero inatingível”.
A noite caiu, as nuvens deixaram-me contemplar a lua e os seus reflexos na água. De dentro da casa saía o som do BLUE MOON..
Com o avançar da música entrei já sem máscara mas sentindo que o silêncio cá fora era uma estranha forma de paz.
Naquela noite, aos dezassete anos de idade, não perdi o coração mas fiquei com a boca a saber a uma realidade diferente… Cresci um pouco!
Clara Roque Esteves

1 comentário:

  1. Caro ML
    Finalmente regressaste à Tabanca e aos belos textos.
    Um abraço de amizade

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