O dia estava a chegar ao fim. Minha mãe, velhinha de oitenta e oito anos, esperava-me à porta do Centro de Dia de apoio à terceira idade.
Ali ao lado um rosto conhecido de alguém da minha idade, que não via há uns tempos e nunca pensei encontrá-lo ali. Era o camarada Almeida de Gandembel. Abatido, psiquicamente destruído.
Ao ver-me a comoção tomou conta dele, as lágrimas deslizaram pela face. Eu contive as minhas, mas o meu coração estremeceu e chorou também. Era o seu primeiro dia naquela casa que outrora os povos do norte da Europa batizaram de “casa dos elefantes”.
O Almeida de Gandembel que algumas vezes nos deliciou na Tabanca de Matosinhos cantando o Hino de Gandembel e tantas outras canções que nos transportavam de novo para a nossa juventude. O Almeida deixou de cantar o seu hino. Agora chora de desalento.
O Hino que os camaradas da C.Caç 2317 cantarolavam, quantas vezes acompanhados pelo ribombar das canhoadas que o um inimigo impiedoso, raivosamente despejava sobre Gandembel, bem no meio da mata do Cantanhez, como que a porta do carreiro da morte.
O Hino que nos fins dos anos sessenta era o símbolo da nossa resistência, nos muitos campos de batalha semeados pela Guiné, como que um grito de lamento.
O Hino que o Almeida gravou em CD com tanto carinho em 2007 e foi o centro do show musical que animou a festa de recepção aos participantes do Simpósio de Guilege em 2008, no antigo quartel general em Bissau, agora transformado num Risort
Ali, ao som da sua música, combatentes das duas frentes, deram as mãos, cantaram e dançaram , animados pelo Conjunto Furkuntunda que deu nova alma ao nosso hino, transformando um lamento de guerra num grito de paz.
O Almeida perdeu a vontade de cantar.
-Sabes, Teixeira, a mulher continua a trabalhar e eu fico sozinho em casa, mas não consigo suportar o isolamento. Aquele silêncio ! . . . os fantasmas que te perseguem, pensei eu.
A sorte tem sido madrasta para o Almeida. Não lhe bastou, a fome a sede, o medo e a raiva ao ver os seus camaradas tombar, mortos ou feridos a seu lado. Não lhe bastou ter fintado tantas vezes a morte, nos trezentos e setenta e dois encontros ( Ataques e emboscadas) com o inimigo, que um se camarada foi contabilizando, nos cerca de oito meses que viveu em Gandembel, sem contabilizar tantos outros que vivenciou nas picadas de Buba.
Uns anos mais tarde, o seu filho único, quando cumpria o serviço militar, morreu num estúpido acidente. Regressava à sua unidade vindo de santa Margarida onde estivera em treino operacional. Um acidente na estrada, entre duas viaturas de civis, fê-lo saltar da viatura para acorrer às vítimas na sua missão de enfermeiro. Nesse instante uma terceira viatura, ceifa-lhe a vida.
A família Almeida ficou destroçada. Ele nunca mais voltou a ser o mesmo Almeida, mas a sua grande fé ia lhe dando forças. Tentava abafar as suas mágoas rezando e cantando. Na última vez que esteve na Tabanca de Matosinhos, trouxe a Biblia para nos ler um Salmo e a sua voz para nos deliciar mais uma vez com a sua canção preferida – O Hino de Gandembel e outras canções do seu reportório de outros tempos, que acompanhamos com prazer.
Agora, passa o dia sentado num velho sofá a ver Televisão, absorto da realidade que o rodeia.
O Monstro “Gandembel”que um governador mandou construir, enterrando lá centenas de contos, e outro governador, no mesmo ano, mandou abandonar, deixando lá cerca de cinquenta jovens vidas e enviando outras tantas para Lisboa, quantos delas estropiadas para o resto da vida. Esse terrível monstro continua a fazer vítimas.
Neste dia de quinta feira, a noite chegou mais cedo para mim.
Zé Teixeira
Ali ao lado um rosto conhecido de alguém da minha idade, que não via há uns tempos e nunca pensei encontrá-lo ali. Era o camarada Almeida de Gandembel. Abatido, psiquicamente destruído.
Ao ver-me a comoção tomou conta dele, as lágrimas deslizaram pela face. Eu contive as minhas, mas o meu coração estremeceu e chorou também. Era o seu primeiro dia naquela casa que outrora os povos do norte da Europa batizaram de “casa dos elefantes”.
O Almeida de Gandembel que algumas vezes nos deliciou na Tabanca de Matosinhos cantando o Hino de Gandembel e tantas outras canções que nos transportavam de novo para a nossa juventude. O Almeida deixou de cantar o seu hino. Agora chora de desalento.
O Hino que os camaradas da C.Caç 2317 cantarolavam, quantas vezes acompanhados pelo ribombar das canhoadas que o um inimigo impiedoso, raivosamente despejava sobre Gandembel, bem no meio da mata do Cantanhez, como que a porta do carreiro da morte.
O Hino que nos fins dos anos sessenta era o símbolo da nossa resistência, nos muitos campos de batalha semeados pela Guiné, como que um grito de lamento.
O Hino que o Almeida gravou em CD com tanto carinho em 2007 e foi o centro do show musical que animou a festa de recepção aos participantes do Simpósio de Guilege em 2008, no antigo quartel general em Bissau, agora transformado num Risort
Ali, ao som da sua música, combatentes das duas frentes, deram as mãos, cantaram e dançaram , animados pelo Conjunto Furkuntunda que deu nova alma ao nosso hino, transformando um lamento de guerra num grito de paz.
O Almeida perdeu a vontade de cantar.
-Sabes, Teixeira, a mulher continua a trabalhar e eu fico sozinho em casa, mas não consigo suportar o isolamento. Aquele silêncio ! . . . os fantasmas que te perseguem, pensei eu.
A sorte tem sido madrasta para o Almeida. Não lhe bastou, a fome a sede, o medo e a raiva ao ver os seus camaradas tombar, mortos ou feridos a seu lado. Não lhe bastou ter fintado tantas vezes a morte, nos trezentos e setenta e dois encontros ( Ataques e emboscadas) com o inimigo, que um se camarada foi contabilizando, nos cerca de oito meses que viveu em Gandembel, sem contabilizar tantos outros que vivenciou nas picadas de Buba.
Uns anos mais tarde, o seu filho único, quando cumpria o serviço militar, morreu num estúpido acidente. Regressava à sua unidade vindo de santa Margarida onde estivera em treino operacional. Um acidente na estrada, entre duas viaturas de civis, fê-lo saltar da viatura para acorrer às vítimas na sua missão de enfermeiro. Nesse instante uma terceira viatura, ceifa-lhe a vida.
A família Almeida ficou destroçada. Ele nunca mais voltou a ser o mesmo Almeida, mas a sua grande fé ia lhe dando forças. Tentava abafar as suas mágoas rezando e cantando. Na última vez que esteve na Tabanca de Matosinhos, trouxe a Biblia para nos ler um Salmo e a sua voz para nos deliciar mais uma vez com a sua canção preferida – O Hino de Gandembel e outras canções do seu reportório de outros tempos, que acompanhamos com prazer.
Agora, passa o dia sentado num velho sofá a ver Televisão, absorto da realidade que o rodeia.
O Monstro “Gandembel”que um governador mandou construir, enterrando lá centenas de contos, e outro governador, no mesmo ano, mandou abandonar, deixando lá cerca de cinquenta jovens vidas e enviando outras tantas para Lisboa, quantos delas estropiadas para o resto da vida. Esse terrível monstro continua a fazer vítimas.
Neste dia de quinta feira, a noite chegou mais cedo para mim.
Zé Teixeira
Zé
ResponderEliminarAcabei de ler e sei como te sentiste, caro amigo.Ao longo da nossa vida, já um pouco comprida sofremos reveses que custam a esquecer. Mas ainda tivemos esses acrescimos dos Gandembeis, que por muito os queiramos esquecer nunca conseguimos.
Zé
ResponderEliminarTemos que trazer o Almeida mais vezes para o nosso meio. Pelo menos às quartas-feiras...
Trata de o convencer, e nem que seja arrastado tra-lo cotigo tamém... como diz a música
Alavro
Este é o comentário que acabo de deixar no blogue da nossa Tabanca Grande:
ResponderEliminarPorra!, Porra!...
A guerra da Guiné nunca acabará para nós. Indirectamente, continuamos a vivê-la. E cada vez mais, com o tempo que nos traz ao de cima as mazelas do corpo e da alma...
Fiquei muito sensibilizado pela situação do Almeida, o intérprete do Hino de Gandembel (que eu conheci num jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos, em 2007, salvo erro).
Obrigado, Zé Teixeira, por mais uma vez mostrares que és um homem de grande sensibilidade, grandeza e solidariedade... As tuas palavras tocaram-me fundo, como em Gandembel, quando lá deixaste no dia 1 de Março de 2009 uma planta aérea em memória dos que lá lutaram e tombaram.
Por favor, mobiliza a malta da Tabanca de Matosinhos e mostra ao Almeida o que é a camaradagem e a amizade dos ex-combatentes da Guiné. Sobretudo não o deixem sozinho! E é bom que ele verbalize o seu sofrimento, o seu desassossego, o seu sofrimento... Em qualquer dos casos, parece-me que ele precisa de ajuda médica e psicológica...
Temos de ser todos por um e um por todos, como nos velhos tempos em que enfrentámos o perigo e a morte na guerra...
Sobretudo não podemos calar, esquecer, ignorar, escamatoear o sofrimento daqueles de nós que estão hoje mais em risco, que estão mais vulneráveis, que estão mais fragilizados...
O que está a acontecer ao Almeida, pode acontecer a qualquer um de nós, em qualquer momento... Hoje a guerra que travamos é mais insidiosa e invisível: o envelhecimento, a solidão, a falta de auto-estima, a doença, a depressão...
O Almeida,tanto quanto sei, não lê o nosso blogue nem deve ter endereço de e-mail... Mas podemos dar-lhe uma palavrinha, de viva voz (aí em Matoisnhos), ou pelo telefone... Zé, vê se descobres o telefone de casa...
Também podemos mandar-lhe pequenas mensagens, por esta via, que de certo chegarão á Tabanca de Matosinhos e ao seu conhecimento, através do Zé e dos outros camaradas de cinco estrelas que lá temos.
Força, Almeida! Ainda não é agora que as morteiradas e as canhoadas do destino te vão deitar abaixo. Quem sobreviveu a Gandembel, não se vai abaixo das canetas sem primeiro dar muita luta...
Às terças e quintas irei visitá-lo.
ResponderEliminarVou tentar trazê-lo até Matosinohs à 4ª almoçar com a gente da Tabanca.
O Telm. dele é: 932896244